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Comidas do sertão
Author(s) -
Julie Antoinette Cavignac,
Maria Isabel Dantas,
Gabriela da Silva Sales Beltrão
Publication year - 2019
Publication title -
revista ingesta
Language(s) - Portuguese
Resource type - Journals
ISSN - 2596-3147
DOI - 10.11606/issn.2596-3147.v1i2p213-214
Subject(s) - humanities , political science , colonialism , art , law
A alimentação, que no Nordeste brasileiro é apresentada como um dos principais elementos de reivindicação de uma tradição histórica e de uma identidade regional, tem como referência a sociedade colonial que se estruturou no século XVI. A arte culinária, tal qual foi retratada por Gilberto Freyre na sua obra, seria uma resposta cultural à situação colonial: num sistema escravocrata determinado por constrangimentos históricos, econômicos e sociais, a comida teria sido um dos elementos que “adoçou” as relações entre os Mestres e os escravos e permitiu desenvolver uma sociedade supostamente harmoniosa. Segundo Câmara Cascudo, o sertão seria uma sociedade marcada pela escassez dos recursos naturais e com uma influência predominantemente europeia. Sendo assim, as tradições culinárias africanas teriam tido pouco importância para a organização social e o desenvolvimento da economia regional. Nessa linha de raciocínio, a alimentação é apresentada como um dos principais elementos de reivindicação de uma tradição histórica e de uma identidade regional. Os elementos culturais encenados pelos moradores do Seridó como sendo tradicionais correspondem a uma retórica passeísta: além de reproduzir fraturas sociais, as práticas e os saberes culinários são reflexos de uma dominação colonial ainda vigente. Para se tornarem produtos de consumo urbano, os “alimentos da terra” devem ser transformados em produtos gourmets e se tornarem uma bandeira da identidade cultural regional. Aqui os conflitos não aparecem, o campo é folclorizado e é associado a um passado exótico: os pratos típicos não seriam a materialização da versão colonial da história e a prova da existência das estruturas de dominação em vigor até hoje? Entende-se então porque as questões raciais, as desigualdades e os conflitos territoriais continuam no silêncio. No entanto, ao lado da narrativa colonial e desse modelo alimentar elitizado que tem como base alimentos “ricos” (leite, manteiga, queijo e carne), existe uma culinária elaborada a partir das vísceras, de ossos e de partes pouco valorizadas dos animais. As cozinheiras, geralmente negras e de extratos sociais inferiores, têm o saber-fazer dessas receitas adquiridas tanto nas “casas-grandes” quanto nas “senzalas”. Assim, ao lado da comida dos “ricos”, isto é, da carne e de seus derivados, existe uma culinária elaborada a partir das partes pouco valorizadas dos animais e de produtos mais comuns (milho, mandioca e açúcar). Apesar do estigma, observa-se uma revalorização relativamente recente dessas “comidas de raiz”, que são apresentadas como autênticas e que se popularizaram com a abertura do Nordeste ao turismo nacional e internacional, o sucesso do forró e o ciclo das festas juninas transplantado em meio urbano e a “gourmetização” da cozinha regional. Iremos mostrar como o sertão, que sempre foi o lugar do “atraso”, foi se tornando no imaginário urbano e nacional o lugar da autenticidade e da gastronomia, com a entrada de chefs que imprimiram refinamentos culinários aos produtos “da terra”. Em paralelo com as mudanças estruturais recentes da sociedade brasileira, verificamos que os detentores da cultura alimentar do sertão foram pouco a pouco levados a abandonar seu estilo de vida, e hoje são impossibilitados de consumir a “comida da terra” e os produtos que até pouco plantavam.

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