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No momento em que o corpo humano passou a ser enunciado como uma categoria, como objeto de pesquisa pertencente à produção do pensamento ocidental, sobretudo na modernidade, ele também se tornou alvo de uma intensa proliferação discursiva viabilizada e efetuada em função da organização do pensamento em áreas de conhecimento (anatomia, biologia, fisiologia, medicina), e que se dispõem a um incansável exercício por sua definição e unificação no campo da linguagem. Entre os séculos XVI e XVII, com o aparecimento de novas formas de organização e institucionalização do saber por meio das disciplinas (FOUCAULT, 2004) estabelece-se uma disputa por sua significação no campo conceitual. O discurso científico moderno acerca do corpo humano encontra no desenvolvimento da anatomia moderna, assim como nas demais disciplinas constituintes do saber biomédico importante base de sustentação e definição; é o corpo em sua consistência material que interessa ao conjunto das técnicas anatômicas delimitar: teórica e empiricamente, e do mesmo modo, organizá-lo e por ele responder. Significação recorrente veiculada por disciplinas como a Anatomia, a Fisiologia, a Citologia e a Histologia, organizadoras dos saberes biomédicos é compreender o corpo como realidade exclusivamente biológica. Estudam-se os tipos de células e a composição histológica dos tecidos formadores dos órgãos; estes possuem funções fisiológicas responsáveis pelo funcionamento saudável dos vários sistemas aos quais eles dão origem: endócrino, circulatório, nervoso, cardiovascular, muscular, articular, esquelético, respiratório, digestório, etc. O conjunto desses sistemas compostos por órgãos formarão um organismo, definido como qualquer espécie de ser vivo. Extraímos dessa sentença certa organização permeada por uma lógica hierárquica de acúmulos sucessivos, amontoados celulares que formam estratos, camadas sobre camadas (SPENCE, 1991). Desde uma perspectiva científica esse é um tipo de significação recorrente quando se pensa em como um corpo é organizado; o corpo é definido a partir de sua origem biológica, ancorada por um senso de normalidade, instituindo um padrão de ordem. Uma definição científica ainda hoje utilizada em congressos internacionais de anatomia refere-se à monstruosidade (SPENCE, 1991); termo utilizado na literatura especializada para definir tudo aquilo que escapa à ordem do organismo, ou seja, para uma unidade celular se tornar um organismo, é necessário percorrer a sentença de acúmulos sucessivos de amontoados celulares numa lógica de soma de estratos, que produza um montante de carne e sangue. Quando essa sequência orgânica do organismo não é cumprida, por exemplo, por uma patologia que inviabiliza o desenvolvimento sadio de algum desses sistemas, causando prejuízo funcional ou incompatibilidade com a vida, temos uma monstruosidade, ao invés de um corpo. O desenvolvimento do saber anatômico, portanto, não apenas esquadrinha o corpo para organizálo e representá-lo em função desse saber, como modela nossa compreensão sobre sua consistência material via regime visual. O entendimento e o uso que se faz de sua materialidade certamente é orientado pela circulação desse aprendizado (ORTEGA, 2008). O conhecimento científico geralmente configura-se como uma máquina enunciadora de regimes de veridicção (FOUCAULT, 2004). Do acúmulo de informações que subsidiam

Hans Bellmer & David Nebreda: órgãos desterritorializados